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Sunday, September 21, 2008

O Currículo Local como Resistência Identitária

O currículo local como discurso identitário

Resumo

A educação do africano desde o século.XIX tem sido vista como uma forma de europeização e desvalorização do próprio negro africano em relação aos saberes padronizados pelo ocidente. Contudo após as independências coloniais os africanos permanecem de certa forma reféns daquela imagem como escravos que precisam de ser domesticados ou assimilados para atingirem a categoria social de “seres humanos”. Porque foi principalmente pela educação ou a exclusão dela que o africano aprendeu a desvalorizar-se em relação ao seu outro pois as normas morais que regiam a sua identidade o definiam como sendo inferior em relação ao outro. O currículo é visto nesta perspectiva como um discurso inteiramente identitário, pois promove, cria ou reprime identidades.
O currículo local é visto actualmente como uma das formas de não marginalizar os saberes indígenas ou endógenos permitindo a inclusão do africano no processo de produção de conhecimento. A partir deste ponto defendo que o currículo local é uma afirmação identitária em forma de resistência que o africano tomou para se afirmar em relação ao saber “ universal” (hegemónico) ocidental. O currículo local deixa de ser um instrumento pacífico e torna-se um meio de resistência silenciosa que o africano optou para permitir a produção de um conhecimento endógeno.
O autor pretende reflectir essa perspectiva tendo em conta o contexto educacional moçambicano que se propôs a incluir o currículo local nos seus programas de ensino.

Palavras-Chave: Identidade, Currículo local, Resistência, Educação.

Introdução

A educação moçambicana foi e é uma construção identitária, pois o objectivo é o de formar um indivíduo partindo ou de categorias locais ou de categorias universais. E a educação, através do currículo, proporciona potencialmente o tipo de homem que se pretende em cada uma das sociedades.
A sociedade moçambicana passou por diversas fases históricas que nos permitirão observar as transformações no discurso identitário, particularmente no currículo. O moçambicano parecia ser um indivíduo em dois mundos ou um alienígena numa sociedade estranha apesar dele ter nascido nela, pois a identidade local via-se por vezes suplantada pela identidade universal ou pela identidade imposta.
Este ensaio quer reflectir sobre as seguintes questões: 1) Será o currículo local alguma novidade? 2) Qual é de certa forma a sua origem? 3) Qual é o papel do currículo local hoje?. Partindo do pressuposto que a abordagem é um desafio propositado em relação a questão de produção de identidades no conflito entre o tradicional e o moderno.
A questão da participação no processo de produção de conhecimento traz em voga a questão do currículo local como uma questão de autenticidade mas ao mesmo tempo um desafio de legitimidade. Pois os critérios de validação dos saberes locais ainda não estão claros fora da comunidade que os pratica.

O currículo tradicional e o currículo colonial

Anteriormente a educação do africano e particularmente do moçambicano era feita de acordo com o sistema tribal, do clã e familiar para que o indivíduo pudesse dotar-se de uma identidade que lhe permitisse não apenas conviver no seu meio mas também contribuir para o seu próprio meio. Ora este conjunto de elementos que eram veiculados no ensino e passados de geração em geração consideraremos como educação tradicional, apesar de outros autores tenderem a considerar que a educação tradicional seja outra coisa. E todos os povos do mundo possuíam ou possuem esse tipo de instrução pelo que consideraremos que os nativos de Moçambique também possuíam. O conteúdo desses ensinamentos era transmitido por pessoas mais velhas e instruídas (no sentido possuírem mais experiência) e transmitidos ou para toda a comunidade ou para alguns elementos da comunidade.
O currículo tradicional era composto de elementos folclóricos como é o caso de cantos, anedotas, adivinhas, histórias e mitos, mas por outro lado era composto por elementos práticos que dependiam do tipo de trabalho com que a tribo e o clã se identificavam (pesca, caça, tapeçaria etc.), do meio em que se encontrava (os do interior dedicavam-se inteiramente a caça e os que se encontravam próximo de condições fluviais praticavam maioritariamente a pesca) e também da idade e sexo (os homens iam a caça ou pesca, enquanto que as mulheres dedicavam-se a recolecção e actividades domésticas).
O objectivo da educação tradicional era o de formar integralmente o homem para o mundo que o rodeava através de um forte ensino baseado nos valores da tribo, nas actividades do clã e no ofício da família. Neste sentido diremos que o objectivo era a identificação do homem com o que era local. Formava-se o homem com as aptidões físicas e intelectuais que eram necessárias para a sua sobrevivência no seio da tribo, pois o mais importante era a coesão no grupo. As finalidades dessa educação consistiam na promoção das necessidades de segurança, alimentação e refúgio ao lado da significação obtida no seio da tribo.
O currículo tradicional não fragmentava o conhecimento a fim de poder formar uma coerência na aprendizagem através do ensino simultâneo das tradições, dos valores, da língua, da cosmovisão, etc. Manuel Golias (1993:27-28) considera como alguns elementos dessa pedagogia tradicional os seguintes: i) Ligação íntima da educação com as realidades quotidianas da vida; ii) Pragmatismo dos métodos; iii) Educação sexual.
Os ritos praticados na tribo não só simbolizavam mas também veiculavam uma enorme carga de saberes que permitiam ao indivíduo a uma plena realização no seio do seu povo como também lhe proporciona a harmonia com o meio que lhe rodeava. Os homens não entendiam a natureza como um mero meio para ser explorado mas acima de tudo um meio que lhes proporcionava as condições necessárias para que eles pudessem continuar com a sua existência.
Ora este tipo de educação começou a ser de certa forma desprezada e ao mesmo tempo esquecida com o advento de uma outra, a educação colonial. E a educação tradicional passou a ser vista como uma educação ultrapassada e demodé.
A educação colonial era aquela, conforme o nome diz, que seguia os padrões das metrópoles coloniais, e no caso de Moçambique a educação colonial seguia o padrão colonial português. O objectivo era o de colonizar as culturas ditas tradicionais e substituí-las com as culturas modernas.
A novidade que a educação colonial trouxe consigo foi a criação de escolas como centro de aprendizagem, um espaço onde o conhecimento era sistematizado, elaborado e transmitido. Foi primeiramente entregue as missões a tarefa de ensinar aos indígenas/nativos a civilização ocidental e “inseri-los” na história da humanidade. As missões serviam de instrumentos coloniais favorecidos para a exploração de terras e conquista de territórios (NGOENHA, 2000:64). Os missionários e os sacerdotes (maioritariamente jesuítas) é que eram os educadores por excelência, o que implicava que os valores ensinados fossem os da cristandade, o evolucionismo e alguns ideais do iluminismo. A educação posteriormente na década de 1940 passou, através da Concordata (1940) e o Estatuto Missionário (1941), a ser inteiramente confiado aos missionários obedecendo a uma orientação doutrinária nacionalista-portuguesa.
Com a introdução do ensino rudimentar destinado especialmente aos indígenas, a escolarização passou a ser feita na língua portuguesa, que era alheia para os indígenas moçambicanos. Os nativos de Moçambique foram obrigados a aprender o Português e adoptá-lo como sua língua. Iniciando-se aí um processo de expansão do império português.
O sistema de assimilação introduzido nas escolas coloniais, consistia numa europeização dos moçambicanos através da desnaturalização linguística e cultural, pois os povos dominados aprendiam a comunicar-se na língua do colono e aprendiam a geografia, a história, e a ética colonial. Como afirmou Mondlane (1977:63):
“A análise do conteúdo dos livros de estudo indica que em tudo se foca a cultura portuguesa; a história e a geografia africanas são totalmente ignoradas, toda a atenção incide sobre a língua portuguesa, a geografia das descobertas e conquistas dos Portugueses; moralidade cristã; artesanato e agricultura”.
Neste sentido o processo de assimilação era uma via legal que permitia que o indígena “selvagem” se tornasse “civilizado”, partindo da requisição de uma cidadania portuguesa a um tribunal local[1]. O indígena assimilava a cultura europeia e renegava a sua identidade. Contudo Severino Ngoenha (2000:76) considerou que tal processo não era de assimilação mas de domesticação do indígena pois “em nenhum momento Portugal quis fazer de Moçambique e dos moçambicanos portugueses (...)A intenção era domesticar os moçambicanos e pô-los ao serviço dos portugueses”.
E educação colonial era neste sentido um processo de alienação do indígena apesar de ter aberto as portas para um alfabetismo à l’Europe. Os conteúdos eram sistematizados, mas a abertura para uma identidade do indígena era totalmente remota. Criava-se na escola uma espécie de zoológico onde os ocultava-se aos indígenas a sua verdadeira realidade e potencialidades. As políticas de dominação impostas pelo colonialismo trouxeram o indígena para a escola fazendo-o esquecer da sua própria condição africana através de uma pedagogia alienante.
Mas como pode-se forjar um currículo que permita o reenquadramento do indígena à sua própria realidade e expô-lo as suas próprias potencialidades? Como é que a educação poderá fazer valer o sentido da existência do africano?
Ora, muitos africanos assimilados conseguiram através das missões bolsas de estudo para irem estudar nas metrópoles, e lá iniciaram com o processo de luta contra a colonização. Pois com a abertura para o mundo a sua própria percepção fez com que muitos reconsiderassem a possibilidade de outros como eles também poderem ter acesso as mesmas condições educativas a que eles foram susceptíveis.

As lutas pela identidade (nacionalismo africano e comunismo)

Por volta da década de 1960 iniciou-se nas colónias anglófonas, francófonas e lusófonas o combate contra o colonialismo e em Moçambique, através da FRELIMO em 1975 conquistou-se a independência. Mas a conquista da independência trouxe consigo dois problemas relacionados com a escola: 1) Deveria continuar-se com o currículo colonial? 2) Será que deve-se retornar aos modelos tradicionais de ensino?. Mas continuar com o modelo colonial implicava perpetuar o colonialismo e segundo retroceder ao modelo tradicionalista implicava negar a evolução do próprio ensino. A educação no período da independência é que iria determinar a geração pós-independência e o futuro da própria nação. De certo que não se queria nem um moçambicano europeizado mas também não se queria um africano “ parado no tempo”.
Ora o governo moçambicano saído da independência tinha que formular uma educação que permitisse uma identificação com a realidade moçambicana, combate ao tribalismo e com especialistas para responder as diversas demandas existentes na Nação. A única saída era aliar-se ao elemento ideológico vigente na época, o Marxismo-Leninismo, pois de certa forma parecia contribuir para o sentido de identidade nacional.
A educação baseada na ideologia socialista soviética permitiu à inclusão na escola não só de elementos políticos-ideológicos mas também a formação de professores para as diversas matérias que se pretendiam ensinar. Desse modo houve uma extensão da rede escolar para um maior número de moçambicanos que durante o período colonial não teve acesso as disciplinas escolares.
O objectivo da educação era a formação do “Homem Novo, com plena consciência do poder da sua inteligência e da força transformadora do seu trabalho na sociedade e na Natureza; oHomem Novo, livre de concepções supersticiosas e subjectivas” (MAZULA, 1995:110). Esta educação visava a unidade nacional baseada numa educação revolucionária, aberta e científica. Para que o moçambicano não perde-se a sua identidade e ao mesmo tempo pudesse se incluir no mundo. Mas o problema é que a FRELIMO olhou a sociedade tradicional como uma sociedade feudal e tribal, abstendo-se de incluir muitos dos elementos culturais dos indígenas por serem incompatíveis com os projectos políticos de modernização sócio-económica.
A educação tradicional foi vista neste novo processo de reestruturação curricular como sendo conservadora de valores ultrapassados. O tradicional foi considerado como sendo primitivo e inadequado para as necessidades modernas da sociedade moçambicana. Pelo que optou-se por apenas enquadrar no ensino apenas a produção agrícola como uma disciplina que tivesse relação com os saberes tradicionais.
O Homem Novo era totalmente anti-tradicionalista semelhante ao do ideal moderno-iluminista que devia seguir apenas a luz da razão e basear-se na técnica. Porque o tradicional era visto como obscurantista, foi visto como um perigo para o progresso social proposto pela FRELIMO. Acentua-se mais um currículo ligado com a prática e anti-tribal para a consolidação do projecto de moçambicanidade.
Os componentes identitários neste período eram mais considerados de acordo com as políticas ideológicas que com a realidade local de cada uma das regiões, pois era mais importante consolidar a identidade nacional como também a consciência ideológica do Homem Novo.
As línguas locais foram novamente excluídas do Sistema Nacional de Educação de forma que se optou na adopção da língua portuguesa como a língua da unidade nacional. E as línguas moçambicanas não podendo ser nacionais foram expostas ao confinamento das aldeias. Neste sentido o seu enquadramento nas escolas nacionais não passava de mera utopia, pois não constava nos planos do governo.
O projecto social desenvolvido pretendia desenvolver uma identidade nacional a fim de fazer-se perceber o conjunto. Era um projecto de totalidade social e não de particularidades. A educação devia zelar pela solidificação do conjunto e não das partes.
Mas a ideologia como defende Elungu (1984:134) faz com que a educação não liberte tornando-se num factor alienante. Neste sentido, Elungu pretende afirmar que a educação possui apenas um elemento e um contributo técnico para a sociedade sem influenciar consistente no comportamento moral dos cidadãos. Porque estes cidadãos olham a educação como um mero meio de aquisição de certos objectivos.
A educação nacionalista ideológica permitiu a consistência de uma identidade nacional mas desprezou os perigos advindos desse currículo. Pois de certa forma contribuiu mais ainda para a marginalização dos saberes tradicionais/locais existentes nas comunidades. Abrindo a mão para aquilo que chamaríamos de «crise de identidade» pois apesar de se ser moçambicano as escolas continuavam a ensinar maioritariamente o que era exterior a realidade local. A marginalização dos saberes locais contribuiu fortemente para uma incompreensão das identidades particulares na educação.
A educação nacionalista contribuiu, como argumenta Castiano (2005:81), para dar ao moçambicano “ uma dimensão metafísica (ao inferir qualidades humanas universais) e ao mesmo tempo ter tentado concretizar estas qualidades numa realidade concreta (Moçambique) e enquadrá-las numa luta concreta: a luta pela liberdade”.
Perante esta abertura para o mundo e a tentativa de consolidação identitária, o projecto educacional moçcambicano carecia, como defendi acima, de uma desmarginalização dos saberes locais e revalorização do que se considerava como tradicional e podia ser usado na escola.
Depois da crise do comunismo soviético, muitos países africanos, como é o caso de Moçambique optaram pelo sistema económico capitalista. E isto mais uma vez, levou a questão da fundamentação da educação.
A partir de 1987 a educação moçambicana toma novos contornos através da exclusão das disciplinas de carácter ideológico e início de parcerias com o estrangeiro. Ora, as mudanças políticas e sociais fazem com que se repense no projecto educacional moçambicano. O aumento de ajudas externas aumentou a dependência do próprio país no desenho de políticas educativas dependentes do exterior.
A questão que se faz é saber-se até que ponto a educação moçambicana neste período subjacente será realmente moçambicana?



Interacção discursiva entre o local e o global


Com o IV Congresso da Frelimo iniciou o longo período de parcerias entre o Banco Mundial (BM) e FMI (Fundo Monetário Internacional), devido ao Plano de Recuperação Económica (PRE). O país iniciou um longo processo de recepção de donativos e empréstimos que haveriam de influenciar fortemente o sistema educacional. A agenda dessas organizações visava principalmente reabilitar as escolas destruídas durante a guerra e a formação de professores como também desenhar a educação no período pós-guerra (CASTIANO, NGOENHA, BERTHOUD, 2004:107).
Contudo as organizações internacionais não só disponibilizavam fundos de ajuda, mas através da assistência técnica, elas tem tido grande impacto na formulação de políticas e de estratégias de desenvolvimento da educação em Moçambique. A assistência técnica era providenciada por estrangeiros o que dificultava o governo de estabelecer uma política nacional de educação.
A educação neste período (1987-2000) apercebeu-se que grande parte do fracasso escolar era devido ao uso da língua portuguesa como a língua oficial na sala de aulas, por essa razão a reforma curricular que decorreu nesse período visava abarcar quatro aspectos principais:

i) Os ciclos de aprendizagem;
ii) O ensino básico integrado;
iii) a disctribuição dos professores;
iv) a promoção semi-automática
v) a introdução de línguas nacionais no ensino;
vi) a introdução da língua inglesa no ensino;
vii) a introdução de ofícios ;
viii) a introdução da educação musical e cívica;
ix) a introdução do currículo local;

Ora na minha abordagem centralizar-me-ei apenas nos pontos v), vi) e ix) pelo facto delas servirem para fundamentar a questão da formulação de identidade e resistência. A introdução de línguas locais no ensino parte de uma estratégia de melhoria das condições de aprendizagem da maior parte das crianças moçambicanas pois, a homogeneidade e heterogeneidade espacial e linguística permite a coexistência dialógica. O que implica saber-se escrever e ler na sua língua materna (que não é o português) e ter um contacto mais aprofundando com a sua própria realidade. A percepção da realidade local parte sempre da língua pois é com através dela que se produz o conhecimento do meio, e ao mesmo tempo se tem um certo sentido de identidade. Ora inseridas as condições básicas para a compreensão da realidade local propõe-se que o inglês seja introduzido para permitir um melhor maior diálogo entre os moçambicanos e o resto do mundo mas também para poderem competir no mercado partindo de um padrão linguístico internacional.
Partindo da introdução das línguas moçambicanas e da língua inglesa vê-se que de certa forma já não se pretende um currículo que possa incluir apenas o moderno em detrimento do que se considera tradicional/ultrapassado. Mas ao contrário nota-se a perspectiva de tender-se a estabelecer um diálogo intercultural que permita uma melhor inclusão do cidadão moçambicano no mundo globalizado e multicultural partindo da sua identidade. Mas será que só a língua é que permita a percepção da cosmovisão de uma comunidade? Serão apenas os idiomas os depósitos da tradição?
Percebidas as fraquezas da alienação linguística colonial e o anti-tradicionalismo ideológico socialista passaremos a analisar a questão da introdução do currículo local e os desafios que dele advém.

Identidade, resistência e currículo local: uma aproximação teórica

A identidade é forjada a partir da educação e a compreensão de uma identidade nacional parte dos meios como essa identidade é forjada. O currículo tem sido o meio pelo qual as sociedades têm determinado ontologicamente o tipo de homem que pretendem. As sociedades africanas anteriormente vinculavam o conceito de integração no conjunto, os colonos o conceito de alienação, no período socialista pretendia-se o Homem Novo e agora pretende-se um homem bipolar (entre o local e o universal). Durante o processo de afirmação identitária os saberes locais antes considerados relevantes nas sociedades tradicionais foram sendo marginalizados e esquecidos permanecendo num estágio de silêncio. E agora pretende-se revalorizá-los e enquadrá-los na sociedade actual, contudo não pensamos nas implicações epistemológicas que tal projecto acarreta.
O currículo local é definido (CASTIANO, 2005:194) como sendo: 1) Matérias de interesse local no ensino centralmente definidos que aprofunda estes conteúdos visando o desenvolvimento de atitudes e práticas relevantes de e para a comunidade; 2)Aquilo que a comunidade acha que os seus filhos devem aprender e que é importante dentro daquela comunidade; 3)São conteúdos relevantes para a escola ou local onde a escola se encontra situada.
O local centraliza-se mais em actividades praticadas na comunidade, e estas actividades têm sempre uma ligação prática e não meramente teórica. O que implica que cada comunidade determina o que deve e não deve ser ensinado, pois as actividades ensinadas permitirão a criança o enquadramento na comunidade.
Mas o currículo local veicula consigo mesmo os saberes locais e desta forma a introdução do currículo local implica um desafio aos paradigmas ocidentais de cientificidade. Pois os saberes locais são saberes aplicados na comunidade e é esta quem legitima a própria validade desse conhecimento. Ora a escola e a universidade possuem como pressuposto a ensinar elementos que sejam passíveis de universalidade científica, mas como é que o saber local poderá afirmar-se no seio da resistência paradigmática imposta pelo ocidente?
O facto que pretendo desenvolver é que o processo de resistência epistemológica já é por si mesma uma característica de cientificidade, pois de um lado os próprios saberes locais resistem à imposição ocidental e do outro a universidade científica ocidental resiste aos saberes locais. Por isso, a única forma de se provar a utilidade dos saberes locais na ciência dependerá da aplicabilidade destes na escola, primeiramente através da formulação identitária.
O currículo local tem resistido no tempo silenciosamente e por causa disso considera-se inútil a sua introdução em universidades. Mas o currículo local/saberes locais permitem perceber o conhecimento preexistente a dominação colonial e os elementos que são característicos de uma epistemologia africana. E por outro lado o currículo local permite abordar integralmente o homem, quer seja física quer psicologicamente facto que a ciência na perspectiva ocidental também tem feito.
A resistência aos saberes locais nas universidades ou pelo ocidente devido a falta de cientificidade envolve acima de tudo a questão identitária pois o grande desafio aos saberes locais como também à ciência ocidental é o abandono da metanarrativa do universalismo ocidental e abrir-se para as micronarrativas e com elas compor-se um corpo mais abrangente de saberes. Porque nas comunidades existe uma Biologia, Química, Física e até uma Filosofia mas não com os mesmos nomes e nem os mesmos significados mas com a mesma utilidade.
Se a escola moçambicana introduziu o currículo local foi para uma maior compreensão identitária mas considero que a maior amplitude disso é o quebrar do silêncio dos saberes locais e a sua contribuição para a ciência (no sentido universal). Remetendo uma certa responsabilidade aos africanos/moçambicanos no que diz respeito a produções científicas que falem das suas próprias realidade factuais e não meras abordagens á L’occident. De contrário perpetuaríamos a resistência silenciosa dos saberes locais e permaneceríamos de certa forma reféns de uma pedagogia descentralizada da realidade moçambicana.

Conclusões (?)

A história da educação moçambicana demonstrou que os conflitos entre a tradição e a modernidade de forma alguma conseguiram silenciar os saberes locais que resistindo silenciosamente ressurgem actualmente nos planos curriculares. E neste sentido o currículo local seria um elemento útil no actual debate sobre o papel do local na produção de um conhecimento universal.
O desafio que persiste actualmente para além das escolas são as universidades, que sendo centros de produção de conhecimento preferem servir-se de conhecimentos produzidos no ocidente ou ocidentalmente validados e marginalizam os saberes locais. Os saberes locais na universidade seria um elemento importante para o diálogo intercultural da epistemologia, pois existem elementos nas culturas locais que podem permitir uma outra abordagem não só a nível da compreensão física do homem mas também para a nível psicológico do homem.
A introdução do currículo local nas escolas permite de outro lado a compreensão identitária afim de não deixar de a produção do conhecimento careça apenas de uma validação ocidental, mas nas próprias localidades a validarem esse mesmo conhecimento e encontrarem uma utilidade para todo o Moçambique.
Contudo no plano de ensino espera-se que o professor use 20% para ensinar o currículo local. Na minha perspectiva parte-se de um bom princípio mas não sabemos se tal é realmente eficaz ou não, pois os critérios de selecção das actividades locais realmente relevantes pode fazer cair no esquecimento outros elementos que também podem ser um meio para o enriquecimento identitário como também epistemológicos. Não serão então esses 20% uma espécie de marginalização dos saberes locais e uma amostra significativa que consideramos útil e válido aquilo que é ocidentalmente produzido?



Bibliografia

CASTIANO, J. P., Educar Para Quê?: As transformações no Sistema de Educação em Moçambique. Maputo, INDE, 2005.
CASTIANO, J. P., NGOENHA, S.E., e BERTHOUD, G., A Longa Marcha Duma “Educação para Todos” em Moçambique. 2ª edição. Maputo, Imprensa Universitária, 2005.
CASTIANO, J.P., “ O Currículo Local como espaço de coexistência” in CASTIANO, J.P., ZIMBA, B. (coor.), As Ciências Sociais na Luta Contra a Pobreza em Moçambique. Maputo, S.E., 2005.
ELUNGU, P.E.A, “Philosophy and problems of education in Africa” in VVAA, Teaching Research in Philosophy : Africa. France, UNESCO, 1984.
GOLIAS, M., Sistemas de Ensino em Moçambique: Passado e Presente. Maputo, Editora Escolar, 1993.
MAZULA, B., Educação, Cultura e Ideologia em Moçambique:1975-1985. Maputo, Edições Afrontamento e FBLP, 1995.
MONDLANE, E., Lutar Por Moçambique. Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1977.
NGOENHA, S.E., Estatuto e Axiologia da Educação. Maputo, Livraria Universitária, 2000.


[1] Perante o tribunal local o requerente de cidadania portuguesa devia possuir duas condições básicas: 1) Domínio da língua portuguesa tanto falada com escrita; 2) Possuir estabilidade financeira. Satisfeitas essas condições o requerente jurava o desejo de querer abandonar os costumes nativos e viver como um cidadão europeu.