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Friday, November 22, 2013

Manifesto dos Filósofos Moçambicanos pela Paz

Nós, filósofos moçambicanos, reunidos num colóquio científico por ocasião da abertura dos primeiros Doutoramentos de Filosofia em Moçambique, decidimos por via deste manifesto, manifestar a nossa profunda solidariedade com o nosso povo que volta a conhecer situações dramáticas de violência e de guerra como aconteceram no passado.
A vocação da filosofia não consiste unicamente num pensar a realidade do homem e o seu estar-no-mundo (dimensão teórica), mas ela tem também necessariamente que militar marxianamente pela sua transformação.
As transformações essenciais que urgem no contexto moçambicano nos parecem, em primeiro lugar, a estabilidade, em segundo, o desenvolvimento económico, político e social e, em terceiro, a criação de uma verdadeira comunidade nacional (cum munia/partilha de bens materiais e imateriais).
A fim de atingirmos estes objectivos ocorre que militemos duma maneira mais firme e determinada defendendo uma política que priorize, a todo custo, a dimensão do diálogo. O diálogo supõe, em primeiro lugar, o reconhecimento do outro. Em segundo lugar, significa meter em comum um sentido, o que ainda não é, a partir do que já é; e constatar as divergências com base no que já se tornou comum. Por isso o diálogo tem que se basear sobre a nossa igual pertença a Moçambique, ao facto de termos uma história comum, de militarmos todos pela paz e querermos construir uma história futura para as novas gerações de harmonia e cooperação.
A paz pressupõe a tolerância que não é simplesmente o antónimo da intolerância, mas também da indiferença em relação a sorte política, económica, social, em resumo, a sorte humana do outro.
Voltaire dizia: Eu não estou de acordo contigo mas vou me bater para que tu possas dizer a tua opinião.
Toda a guerra aparentemente justa nas suas finalidades é intrisicamente injusta nos seus meios. A guerra comporta uma monstruosa cruelidade na qual o homem não só mata o outro homem, mas o insidia, o assalta, sacrifica-o com toda a crueldade que lhe é possível. A “guerra dos 16 anos” está lá para testemunhar barbaridades e desumanidades que prescidem de toda descrição.
O comportamento mais honesto e mais moral numa guerra, é sempre desonesto e amoral por razões objectivas, de maneira que se dá o paradoxo da tragédia da guerra poder conter dentro de si uma busca de uma justiça nos fins, mas que é inexoravelmente e intrinsecamente injusta nos meios. Esta é a inevitável condição da criação da tragédia na tragédia.

É preciso não esquecer a lição de Kant: A guerra produz mais malvados do que aqueles que ela destroi.

Saturday, June 15, 2013

José Gil sobre a Identidade

Por José Castiano


O filósofo português José Gil publicou uma pequena obra onde se debruça sobre a identidade (Em Busca da Identidade: o Desnorte. Relógio de Água. Lisboa, 2009). Naturalmente que ele tem em vista a identidade nacional portuguesa, quando escreve. O que é interessante, porém, é que ele define identidade como uma "patologia de que eu é o vírus despótico"; nas suas palavras, a identidade caracteriza-se como sendo "o surgir do eu como condição de possibilidade de afirmação de todos os atributos do indivíduo" (p.20).  Ele chega mesmo a adiantar a tese segundo a qual "o nosso mal é a identidade" por termos feito dela "um território da subjectividade". Ou seja, o mal da modernidade reside no facto de ter acoplado a identidade à pertença a uma territorialidade, constituindo esta base e condição para o gozo das liberdades enquanto cidadão. podemos inferir que, seguindo este raciocínio, o gozo das minhas liberdades e direitos enquanto cidadão só se realizam (ou, por outra, só os posso reclamar, ou lutar por eles) no contexto da minha moçambicanidade. 

Assim, ainda segundo José Gil, a identidade se torna o maior obstáculo do nosso desenvolvimento, uma espécie de paralisante do avanço: "a única maneira de remover o obstáculo da identidade é destruí-la como uma instância territorializante". 

De facto, segundo ele, o processo de criação de uma identidade seja individual ou nacional ocorre determinado por "estruturas de subjectivação" através das quais o indivíduo se reconhece como ele próprio ou como membro de uma determinada comunidade. Este processo de subjectivação em que uma pessoa adquire ou internalisa uma identidade é, no entanto, induzida por forças de "fora" do sujeito identitário. Como José Gil diz, é por um processo de "incorporação" de forças entre um sistema institucional de poder e de saber e as forças de um homem livre: "o indivíduo livre será integrado no sistema graças a uma codificação ou à moldagem das forças livres pelas regras da instituição" cujo resultado quase óbvio é a "dobragem".  A dobragem não é mais que uma espécie de mecanismos de codificação que cada  indivíduo desenvolve perante as forças de fora. Portanto, a dobragem é o momento e processo decisivo para a subjectivação que leva á formação da identidade.

No entanto, José Gil alerta que o resultado deste embate de forças não é somente o nascer de subjectividades preestabelecidas pelas instituições ou pelo aparato ideológico do Estado; não é uma "técnica de produzir corpos obedientes" ao sistema ou ao aparato. Há sempre "linhas de fuga" porquanto, pela sua natureza, a subjectividade caracteriza-se por procurar fuga ao poder estabelecido.

O que caracteriza a identidade - que hoje, segundo José Gil, se tornou "arcaica" - era a sua definição no tempo e no espaço pela genealogia, pela tradição e pela relação à terra, à religião, à nação, quer dizer, a identidade refere-se a saberes ancestrais, à língua e à imagem de si, por um lado, e ao poder como força de afecção e de auto-afecção da potência própria do indivíduo e do grupo. Portanto, esta forma de aferir e de interiorizar a identidade depende muito de como as instituições e os líderes políticos passam a mensagem de um mito unificador de todos os membros de uma comunidade e de como este mito apela aos interesse de cada indivíduo para aderiria eles. 

Para o caso dos africanos, o mito de uma proveniência comum nos dá a sensação de uma gloriosa cultura continental e o mito da liberdade nos dá o ideal de pertença a uma nação, contexto de historicidade única que encerra a possibilidade e a condição de ser "livre". E de ter um movimento ou movimentos "nacionalistas", primeiro, um Governo "nacional", depois, que lutaram e lutam por manter esta condição e possibilidade de sermos livres. Entenda-se "livre" como sendo a capacidade de exercer a cidadania numa perspectiva individual, e a capacidade de exercer a soberania, numa perspectiva "nacional".

Ora, para a Europa hoje, as promessas da modernidade que se poderiam realizar em contexto de uma identidade nacional territorrializada, incluem o acesso à educação, aos serviços básicos de saúde, ao emprego, à propriedade privada razoável, à habitação, etc. Tudo estes direitos, para serem adquiríeis e exigíveis quando violados ou ameaçadas as condições do seu acesso livre, exigia ter um bilhete de identidade "nacional"; sem o qual nada feito. Hoje, no entanto, cada europeu, para gozar destes direitos depende cada vez menos, pelo menos directamente, do seu bilhete de identidade "nacional". Muitos destes direitos são, pois, garantidos no contexto da União Europeia, e outros mesmos, como o emprego por exemplo, dependem muito do mercado-mundo e processos mais globais. Então, quer dizer que a identidade nacional territorrializada já não oferece condições e nem possibilidades únicas para garantir uma subjectivação que leve ao mito fundador de pertença primaria a uma nação. É um arcaísmo hoje defender a identidade nacional; e é um arcaísmo de todo o tipo desde moral, religioso, judiciário, até ao político, procurar um artificio nacional. Segundo José Gil: "eis que o nosso território foi abalado pela globalização, para além da Europa. A ameaça total que pesa sobre as nossas vidas, sobre as famílias, sobre o emprego, sobre a educação, sobre a saúde - para não falar no espectro da falência do Estado - obriga-nos a descobrir a dependência radical do nosso pais (Portugal) relativamente ao resto do mundo" (P.58). Ele termina dizendo que "ser português já não protege". Daí que se compreenda que tenha afirmado antes que a única maneira de remover o obstáculo da identidade é destruí-lá como instancia territorializante: "deixarmos de ser primeiro portugueses para poder existir primeiro como homens" (p.21).

A ênfase com que se coloca hoje, no contexto africano a ideia da "unidade nacional" em cada pais, por um lado, e o mito da "unidade africana" por outro, obriga-nos a reexaminar estes dois mitos polícias e culturais respectivamente, à luz do "desnorte" que a Europa está a enfrentar, se seguirmos José Gil. Não estará a retórica da unidade nacional que levou e leva à criação das nossas subjectividades algo ultrapassada? Melhor, não será que o mito da unidade nacional entrou numa fase latente, para não dizer com José Gil "paralisante" relativamente ao aprofundamento das liberdades individuais? A força deste discurso identitario descansava sobre o pretexto justo de libertação da terra e dos homens. E, como dissemos, a territorialidade necessária era o contexto nacional por que este oferecia a condição única de sermos livres e assumirmos as responsabilidades que o futuro liberto nos impunha. 

Agora, no contexto das novas identidades desmitologizadas, isto é já não baseadas na cultura, na tradição e nem das garantias que os estados nacionais possam oferecer ao indivíduo como emprego, saúde e educação, mas sim baseadas num "saber abstracto" e incapaz de fabricar um ideal ou um mito, como José Gil diz, como equacionar um discurso identitario baseado em "nação"? Por outra, como manter o indivíduo identificável perante a mudança de paradigma de uma identidade nacional libertário para um paradigma de "desnorte"? Um desafio que esta obra de José Gil nos coloca a re-equacionar.

José P. Castiano é um pensador moçambicano dedicado à pesquisa do Pensamento Africano e Saberes Locais,  dentre as suas obras se destacam Pensamento Engajado e Referenciais da Filosofia Africana.