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Tuesday, September 21, 2010

Samora Machel pelos olhos de Severino Ngoenha: Ícone Político ou Símbolo sócio-cultural?


Actualmente têm havido várias formas de reflectir sobre o político tendo como principal a actualização e uso do passado em questões actuais. Temos visto um grupo de politólogos e filósofos a escreverem principalmente sobre ícones que cultivaram a essência do saudosismo actual para com o passado. Só para citar alguns exemplos, temos Slavoj Zizek (2007) a escrever sobre Mao Tsé Tung da China, temos Alain Badiou (2008) a escrever sobre Sarkozy na França, Noam Chomsky (2004) sobre G.W. Bush e em Moçambique temos Ngoenha (2009) a escrever sobre Samora Machel, entre outros que me são desconhecidos. O passado-presente (Castiano) parece ser o actual cerne da reflexão, contudo os motivos são pouco explícitos e à primeira vista, parece-nos ainda quase que irracional referir-se sobre o passado de forma tão extravagante  e acima de tudo abraçá-lo apaixonadamente como meio de reflexão, por que afinal de contas o que pretendem tais reflexões? Será que elas pretendem: 1) Explorar as actuais ressureições das imagens dos líderes da revolução na sociedade; ou 2) Intermediar as imagens de tais líderes para fazer ouvir os desassossegos dos filósofos. A análise oferecida pelo presente texto considera que apesar das actuais ressurreições apaixonantes dos ídolos comunistas tenderem a ter uma leitura meramente política por parte dos seus autores, o discurso que está em debate é a cultura: a expressão da vida dos homens.
 Em filosofia da arte é importante distinguir duas coisas: imagem criadas mentalmente e imgens projectadas na sociedade. Como também torna-se relevante perceber a distinção entre discursos (o que se diz, escreve ou se lê...) e imagens (ícones, grafismos, pictorismos).  Para distinguir esses dois processos devemos compreender a questão da autenticidade dos discursos e também permitir uma interpretação identitária dos propósitos da icolarização.  Machel tal como Biko e Che Guevara foi ressuscitado popularmente com alguns intuitos. Ngoenha, meritoriamente expôs na sua obra actual (com a ajuda do hermes Castiano)  a possibilidade de questionamento do que se tem popularizado com imagem.
Está claramente exposto que as questões principais que Ngoenha levanta no livro sobre os feitos de Samora baseiam-se em duas questões: 1) O que fiz? 2) Qual é o mérito dos meus feitos? Explorando sempre de fundo a questão ética dos valores destituídos e reconstruídos a volta da figura emblemática do ícone da primeira república. 
Mas a questão pertinente da obra que acompanha o título pode ser considerada importante. Pelo facto de anteceder ao que nós pretendemos analisar: ícone ou discursos?

O primeiro erro ngoenhiano: iconização ou discursivismo?

O hip-hop, as artes plásticas, as danças e os poemas não fazem parte do universo político apesar de poderem servir como instrumentos de politzação. O Machel que Ngoenha questiona como ícone parece confundir-se entre o Machel cultural e o ícone político. Ao pretender entregar a sua reflexão baseada numa construção social da imagem de Machel, Ngoenha presumiu que se pretende manifestar uma saudade do passado ou uma crítica ao presente, sem deixar a hipótese dessa mesma imagem iconizada poder reflectir um mero simbolismo ou simpatia artística por parte dos que a invocam.
Será que deusa egípcia Maat esqueceu-se que a exaltação de um líder não se liga ao que fez mas por vezes ao que ele disse? Ou talvez Samora deveria ser julgada pelos ossículos da deusa Mathe[1] para que a sua vida pudesse reflectir-se sem quaisquer dúvidas num relflexo claro?
A dicotomia imagem e discurso encontra-se distorcida no que o pensamento de Ngoenha pretende analisar, porque o seu ponto de partida é a imagem que tem sido exaltada actualmente, mas infelizmente a sua reflexão centra-se obsessivamente no discurso e não na imagem. Como Ngoenha (2009:9) afirma “ Existem imagens que condensam nelas uma quantidade e qualidade de significados que palavras, e mesmo a linguagem em geral não conseguem exprimir cabalmente; mesmo se as palavras foram muitas vezes necessárias, e continuam a sê-lo, para tentar explicá-las.”
A ambivalência discursiva na obra talvez seja fruto do próprio chamariz ngonhiano para a análise do contexto moçambicano. Contudo, há que ter em conta que  a verdade da história e a verdade das artes são consideradas opostas e somente em alguns casos complementares, pois a própria arte é intemporal, enquanto que o discurso é temporal.
O trocadilho imagem-discurso pode fraudulentar o argumento ngoenhiano de reflexão política, que culmina com o fazer pensar que imagem iconófila defendida por Ngoenha é política e não artística. Ao centralizar mais sobre o que se diz e não sobre o que se mostra, ambiguosamente Ngoenha remete-nos à uma análise meramente política. Enquanto por outro lado era sua pretensão repensar em como é que Machel foi iconizado pela cultura popular e as representações a que isso nos remete. O que leva-nos a considerar que há um ícone da primeira república com duas simbolizações (uma política e outra cultural). Mas que parece-nos quase que impossível sobre qual deles a reflexão ngoenhiana pretende ilucidar-nos.
A imagem de Samora tem sido reproduzida tecnicamente em várias cores e de várias formas: quer em líricas como em “O país da Marrabenta”, em obras como Samora o homem do Povo e como imagem poética pelos jovens do Xitokozelo. Sem contudo manifestarmos as diversas camisetes, bonés que têm surgido e mesmo imitação de trajes e dizeres. Esta exaltação de Samora, pelos rappers, artistas plásticos e mesmo por escritores, não pode ser considerada uma manifestação de um simbolismo político, mas cultural. O significado simbólico deste Samora é que deveria ser questionado, não meramente pelas mensagens políticas que se tem feito acompanhar essas mesmas imagens. Pois na cultura não é o que Samora representa politicamente (as ideologias, as doutrinas e a governação) que é relevante mas ao contrário é relevante a identidade da nação, os valores, a religião, as tradições (e ensinamentos?).
Será que o ícone da primeira república merece tal título por ser um elo de ligação meramente político-partidária ou por simbolizar aspectos da vida comum cultural dos moçambicanos? De que povo será ele ícone? O seu constituitivo político ou a vastidão diversificada cultural da sua república? Porque é que Samora é mais mencionado em músicas, pinturas e não em discursos políticos ou porque é que Samora Machel aparece a cantar rap e hip-hop e não a fazer campanhas eleitorais ?

O segundo erro ngoenhiano equívoco da plurivocidade do texto?

Existe uma anedota grega que diz que certo dia Alexandre Magno, aproximou-se do seu tutor Aristóteles e perguntou-lhe o que o Sócrates ensinou sobre a arte de governar, e com um olhar sinuoso Aristóteles respondeu-lhe qual dos Sócrates de Platão ou o Sócrates de Atenas? Nesta anedota, Aristóteles questiona a Alexandre sobre que verdade é que ele pretende ouvir, e a nós a pergunta seria, na voz de quem é que percebemos o texto?
O estilo histórico-interrogativo de Ngoenha remete-nos à uma apreciação artística do discurso Samoreano numa vertente nova e interessante. Que poderíamos chamar de a “arte de falar depois de morto” por nos remeter a monólogos e diálogos que intermediam Maat, Osíris, Samora, o povo e o próprio Ngoenha. Mas a dificuldade reside no facto de o discurso Ngonhiano e as falas do povo não serem claramente audíveis pela primeira leitura do texto. Existe uma crise do locutor a certo momento, no qual as audiências confundem-se!
O filósofo não mente, nunca mentirá por mais que pareça estar mentindo. Porque tudo o que pretende fazer é um assédio ao pensamento. O esforço consiste em aproximar a verdade dos receptores por um método dialógico que pareça irracional, para que no final de tudo, o pensamento por si aproxime o auditório ou comunidades de leitores à uma certa versão ou questionamento da verdade.
Da crítica da imagem/símbolo cultura versus política de Samora, a grande questão que o texto ngoenhiano levanta está em relação a justificação de tal excurso pela figura de Samora Machel na actualidade: a crítica da situação actual ou exposição das inquietações do filósofo através de outras vozes? Porquê é que Samora teve de ser julgado e ouvido por deuses egípcios e não por xipocos[2] daqueles que foram afectados pelo seu regime ou por Deus e Jesus Cristo como convém a teologia judaico-cristã? Que arte obscura quererá o filósofo apresentar-nos, pois não há ponto sem nó e não há também figurativismo sem intencionalidade?
Para Ngoenha, é importante existir em si um discurso dialéctico e contraditório à la Hegel para poder-se extrair uma imagem objectiva. Contudo contradição e incerteza (uncertainty) são dois aspectos dos quais o seu texto nos informa, pois a sua tentativa de desconstrução ou questionamento da figura samoreana pela plurivocidade, incapacita de certa forma a distinção entre o que é dito e o que se pretende dizer. E essa incerteza dialógica ou monológica, não permite o alcance da própria objectividade textual a que o autor nos convida a embarcar.
Talvez, para alguns o simples prazer da leitura permita um abraço e recepção clara da verdadeira intenção por trás do que o texto nos mostra, mas para outros considero ainda a necessidade de uma clarificação. O filósofo entrega a sua voz aos deuses egípcios e a Machel para manifestar os seus interesses pessoais ou por outra, dar a sua própria voz aos outros a fim de poder expressar aquilo que são críticas em relação à actualidade.
A plurivocidade da incerteza é problemática se pretendermos perceber quem diz o que e o que se pretende, pois não permite uma selecção clara dos intervenientes. A incerteza reduz a própria capacidade de julgamento e de participação que o próprio autor pretende com a obra. Maat e Osíris falam de Moçambique e trocam de lugar com Samora na tentativa de clarificar as insjustiças actuais e os pecados anteriores, mas não permitem um julgamento objectivo em relação aos interlocutores de tais conclusões.
A analogia ngoenhiana é uma comparação entre os sistemas políticos da 1ª República em relação aos actuais desafios políticos do desenvolvimento actual? Ou, simultaneamente, ao dar voz a Maat e não à Mathe, é uma tentativa de certificação e de validação discursiva através da escolha dos intervenientes do julgamento?
A plurivocidade e ambiguidade textuais características da actual obra de Ngoenha podem ser vistas como uma fragilidade e ao mesmo tempo, ambiguamente, como uma força, por serem as características que enriquecem a capacidade interrogativa do leitor para uma percepção e busca de respostas que literalmente seriam inadequadas de determinar.
As leituras que Ngoenha faz do Liberalismo, da crise do capitalismo e dos modelos democráticos absorvidos do ocidente permitem uma reflexão clara e distintiva das actuais formas de validação discursiva e de participação em massa. O que nos leva a concluir que acima de tudo, a obra de Ngoenha é um julgamento sobre todos os moçambicanos e uma tentativa de inclusão dos discursos culturalmente produzidos e academicamente rejeitados (hip-hop, massificação artística, popularização icónica, crises identitárias, americanização, fashion, dolarização, violências arbitrárias, etc.).


[1] Água em changane, que muitas vezes é usada como símbolo da transparência, vida ou limpeza nos contos tradicionais africanos.
[2] Fantasmas ou demónios no changane

Entre o passado e o futuro: considerações hipotéticas

O homem vai de camelo ao invés de usar a bicicleta porquê? Qual é a dificuldade dele aceitar a modernidade? Será que é por ser africano? Será que é por ser subdesenvolvido? Será que é por ser pobre? Ou será mera ignorância.

Temo que por vezes o pensamento africano seja assim mesmo inconstante e impercebível, o meu maior medo é que no seio de tudo isso o passado mereça maior atenção que o futuro. Porque se o filosofar é estar a caminho, devemos estar a caminho de um aperfeiçoamento e não de um recrudescimento.

Ou então devemos repensar qual será a validade de Nkrumah, Nyerere, Mbiti, Biko entre outros hoje? ou por outra, de que serviram as intenções desses pensadores ao intentar "libertar" África? Se ainda nos sentimos confortáveis com o camelo, de que importa o progresso da bicicleta? Sabemos que temos muitas bicicletas mas o desenvolvimento é tardio, o que dizemos sobre o camelo?

De que nos vale o amanhã se é o ontem que nos cerca em todas as direcções?