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Sunday, November 20, 2011

Entrevista com José Castiano: Entre outras coisas há muita coisa ainda para a Filosofia reflectir...

“Por que precisamos de filosofia?” – depois de ler José P. Castiano, por várias vezes, repetiu-se em nós esta questão nas horas que antecederam à entrevista. Mais do que resposta a esta questão, nos diria Castiano, um país – ou continente – que aprendeu a substituir Deus pelo Ocidente e que passou a vestir-se de FMI precisa de respostas.
“O Ocidente é, para Moçambique e para África, uma espécie de Deus. Os africanos substituíram Deus pelo Ocidente (...). Em tudo o que aprendemos a fazer, como desenvolvimento, fazemo-lo à imagem e semelhança do ocidente como horizonte, como justificação, como legitimação” – escreve Castiano em “Pensamento Engajado”, que assina com Severino Ngoenha.
Para além da invenção de um novo Deus, África vestiu a camisola de democracia, assumindo todas as suas regras. Mas, para Cristiano, corremos o risco de ter uma democracia sem democratas.
Comecemos pela pergunta que faz no “Referenciais da Filosofia Africana”. Por que estudar filosofia em pleno século XXI? Qual é a importância da filosofia num mundo com televisão? Por que parar para ouvir a palavra?
O mundo de hoje é mais da imagem do que da palavra, é mais de ócio que do pensamento. Portanto, neste contexto, estudar filosofia torna-se importante. Mas há três razões básicas para isso. a primeira é que o sentido original da filosofia é admiração, a filosofia começa com admiração, com espanto e com interrogação. Esta é a coisa mais infantil da filosofia. Então, nós todos, como seres humanos, estamos sempre a perguntar sobre o sentido das coisas, seja do nosso próprio ser, da nossa família, dos nossos amigos. A segunda, que eu penso que é mais séria, é que a filosofia é um pensamento crítico no sentido não de avaliar negativamente todos os processos que ela assiste, mas no sentido  de apresentar alternativas à realidade, alternativas de explicação da realidade. Se quiser aplicar termos filosóficos, vou dizer “pensamento crítico é aquele que não vê a realidade como uma fatalidade”, portanto, que tudo pode ser feito de outra forma. Portanto, o nosso sistema de educação e o nosso sistema político podemos olhá-lo como uma forma evolutiva. A terceira (razão), e essa é mais específica para Moçambique,  o olhar filosófico ajuda a equacionar aquilo que é do mais íntimo para o país, que é a identidade moçambicana. A contextualização de moçambique no mundo hoje como país deve ser uma das grandes mensagens do pensamento engajado. Estas podem ser as razões básicas sobre o por que do estudar filosofia. A filosofia não é só repetir pensamentos clássicos, é também na  base deles equacionar a realidade actual.
Um dos dilemas que levanta nos seus livros, que parece também o dilema da própria filosofia e das outras ciências sociais, é o conflito entre o “eurocentrismo” e o “afrocentrismo”. Por que continuamos, ainda hoje, a discutir essas correntes em termos extremos?
Vamos começar do início. As instituições de educação actuais foram introduzidas pela Europa e nós, depois das independências, não conseguimos, ainda, desestruturar essa forma como a Europa introduziu a educação. O que acontece é que a filosofia, no seu íntimo, tem um pensamento libertário. Portanto, estar ao lado da liberdade, contextualizando hoje, significa que a filosofia tem que também se libertar do pensamento eurocentrista, que colocava a filosofia africana numa esquina periférica em relação à própria história e em relação ao seu próprio ser. Mas, por outro lado, encontramos aquilo que chamamos a tentação unanimista, que não seria mais que esta forma europeia introduzida pela antropologia colonial de olhar a África como unânime, a África como  um continente  espiritual, como um continente onde todos são selvagens, uma África tradicional. Parecendo que não, esse pensamento condicionou a forma de nos vermos, de nos olharmos a nós próprios. Então, hoje encontramos uma maioria de intelectuais que também sofrem essa tentação unanimista da forma como olham para os povos africanos quando querem estudar África. Nos meus livros, particularmente “Referenciais da Filosofia Africana”, tento mostrar qual é o caminho que a própria filosofia no seu interior pode seguir para se libertar antes de pregar a liberdade.
O afrocentrismo tem sempre a tendência de recusar a contribuição europeia para a construção história de África. Não será um “egoísmo” desta fazer essa recusa?
No livro “Referenciais da Filosofia Africana” falo de Assante, que é o pai do afrocentrismo actual, em que o mérito, independentemente de juízos de valores que podemos fazer, é de ter iniciado um discurso de desconstrução da forma como a ciência europeia é feita.  Vou dar um exemplo, eu nasci à beira do rio Zambeze, que tem crocodilos. Íamos tomar banho no gombe, (...)e convivíamo com crocodilos. Como lagarto, crocodilo é um animal territorial. Então, é frequente ouvir queixas como “este crocodilo pertence a esta família e foi matar na outra”. Quando se vai queixar no tribunal diz-se que “a família tal matou-me por causa do crocodilo”. Estas crenças já não tem forma de serem compreendidas num contexto científico ocidental. O que Assante fez foi dizer que não só existe essa forma de dois cursos científicos que se baseiam na prova, na verificação, na experimentação, mas também no contexto afrocentrico existem outras formas de pensamento que podem ser consideradas também de científicas. De facto, o afrocentrismo é uma corrente extremista. No fim do livro, quando falo de intersubjectivação, faço uma crítica a essa forma de ver afrocentrista, não podemos tomar  essa como uma posição acabada, mas ela pertence à história do pensamento dos africanos na diáspora e merece o seu espaço na academia africana. Ao ler a minha introdução pode reparar (que)  a academia moçambicana, em quase todas as disciplinas, não introduz conteúdos escritos por africanos. Os escritos africanos e moçambicanos em particular são, totalmente, ignorados.
Como é que podemos apostar na filosofia africana se continuamos a ir buscar constantemente as referências ocidentais?
Há duas maneiras de fazer isso. A primeira coisa é que temos professores mas não temos académicos. Temos universidades mas não temos academias. Um académico é alguém que usando a capacidade de conhecer a área científica usa o seu pensamento para analisar, fazer propostas de significação, propostas de interpretação de fenómenos políticos sociais e culturais no seu contexto. Chamo isso de uma académico e nós não temos muito isso. Penso que uma das formas de introduzir produções intelectuais moçambicanas é os próprios académicos  serem académicos,  todos os professores universitários passarem a ser académicos, produzirem obras que não repetem o conteúdo de exterior,  mas que reflectem na base desses conteúdos científicos o seu próprio contexto. Temos que escrever mais, temos que intervir mais como académicos, mas só o fazemos como professores. O segundo é um problema ético que vejo na ciência, porque analisar o contexto das culturas implica uma certa humildade intelectual, principalmente se estivermos num contexto moçambicano, em que a maioria das pessoas são analfabetas. Portanto, implica sair para uma povoação, conversar com as pessoas sobre os seus pensamentos, suas opiniões e as possíveis ilações que podemos tirar para as universidades. O meu antigo reitor costumava dizer que as universidades devem ser mordidas por mosquitos. Significa que os universitários académicos devem ter uma humildade intelectual de se deixarem ensinar pelos velhos, pelos jovens que estão nas comunidades. Então, isso também é um problema  ético. Então, como último recurso vamos recorrer ao ocidente para escrevermos os nossos livros.
No “Referenciais da Filosofia Africana”, assim como no “Pensamento Engajado”, repete sempre a ideia segundo a qual a filosofia tem que regressar à tradição. Este regresso é feito do mesmo jeito que o ocidente apelou para que a antropologia voltasse à casa?
Penso que falo da necessidade da filosofia moçambicana libertar-se de dois tipos de debate. Primeiro, tem que se libertar do debate ocidental,  que tenta sempre periferizar. Outro é do debate tradicionalista de considerar filosofia africana simplesmente quando a pessoa acredita na feitiçaria, quando a pessoa vai falar com os velhos. Não podemos nos encaixar nessa esquina de classificação filosófica. É uma dupla libertação, que acho que a filosofia deve fazer. Agora, a libertação em relação ao ocidente está, demasiadamente, escrita, por isso, que dou mais atenção à libertação ao debate tradicionalista. Mas libertação não significa ignorar, significa ter a humildade intelectual necessária para se deixar ensinar pelas tradições. O que sinto, em muitas conversas com outros filósofos moçambicanos, é olharem na tradição de duas formas. Uma como uma coisa que se deve empurrar e lutar contra ela; a outra como sendo a panaceia das nossas soluções. É neste sentido que falo de facto que a filosofia deve ir à tradição, mas não com espírito tradicionalista.
Podíamos revisitar os três eixos que apresenta no “Referenciais da Filosofia Africana”, que são a escravidão, a colonização e glocalização. Ainda se justifica hoje olharmos para a nossa construção como nação e como sociedade partindo da colonização e escravidão ou temos de começar a pensar na glocalização?
escrevi um artigo sobre o livro de Samora Machel que o professor Severino Ngoenha publicou e dei-me conta de que hoje o número de escravos duplicou em relação ao período em que havia escravidão oficial. Cerca de doze milhões e meio de escravos foram levados de África para as Américas, Europa e outros continentes. Hoje temos quase 25 milhões de escravos. Quando definimos escravatura como uma condição de vida péssima, em que o indivíduo não tem direito de mudar essas condições. E a maioria desses 25 milhões  são africanos. Estou a falar da escravidão física que ainda não acabou, então imaginemos a escravidão mental. Enquanto não se libertar disso, enquanto a filosofia não estiver contra essa escravidão mental que ainda hoje tem as suas consequências, então a luta continua. Justifica-se hoje chamar atenção, tanto mais que não seja para se repetir. Então, não se justifica, filosoficamente, por ter havido escravidão, justifica-se pelo futuro, no sentido de que nós africanos não queremos mais ser escravizados, nem mais colonizados. Por isso que volto sempre nos meus escritos, porque a escravatura é o ponto de saída, porque é ai onde se determinou o pensamento africano.
No “Pensamento Engajado”, que assina com o Professor Severino Ngoenha, diz que só pode haver sonho dos sonhos que justifique que as pessoas se levantem e rebelem-se. Esse sonho para vocês é a liberdade? Podem justificar-se os conflitos africanos com base nesses sonhos dos sonhos?
Como dissemos antes, África entra na história como escrava, está na periferia da história como um continente escravizado. Nos outros continentes os africanos são conhecidos, primeiro, como escravos e não na outra condição. Nem na condição de reis, nem de régulos, é na condição de escravos. Segundo, os africanos entram na história como colonizados. Terceiro, África está na história, neste momento, como subdesenvolvido, com os índices mais altos da mortalidade, mais baixos de crianças que vão à escola. A luta diária dos africanos, desde que entraram na história como escravos, como colonizados e como subdesenvolvidos, é o sonho da liberdade. Isso explica também os movimentos mundiais. Por que as pessoas vão ocupar wall streat, esse movimento todo que está a suceder pela Europa (“Os Indignados”)? é porque há uma sucessão de que as liberdades fundamentais não foram resolvidas, tanto no contexto africano, como no mundial. As liberdades fundamentais, que são os direitos do homem, não estão a ser resolvidas. O capitalismo não é alternativo, onde essas liberdades fundamentais vão ser realizadas. Portanto, quando  falamos que sempre que essas liberdades estão em causa as pessoas pegam em tudo o que têm nas mãos para poderem exigir os seus direitos, é mesmo para chamar atenção que a luta pela liberdade é eterna, é histórica.
Diz que o capitalismo não é onde essas liberdades podem ser resolvidas. Partindo de duas ideias, uma que defende que se a Europa teve a revolução industrial África precisa de uma revolução social; outra que aponta que o capitalismo falhou e toma como exemplo a crise financeira. Temos de voltar para socialismo ou temos uma outra via?
Penso que África precisa de dois tipos de revoluções. A primeira, sem dúvida, que é agrícola: material de produção de alimentos, comercialização, distribuição. Chamo mesmo agrícola – podia chamar económica. Se chamássemos económico talvez repensássemos nos esquemas de redistribuição de riqueza. Repare que o professor Severino Ngoenha, no livro “Os Tempos da Filosofia”, diz que a guerra em Moçambique terminou sem vencedores.  Ou seja, Severino Ngoenha diz que quem venceu é o FMI e o capitalismo mundial, portanto, a violência continua.  Já não temos a violência das armas, mas temos a causada pela distribuição de riquezas muito desigual. O continente africano tem a distribuição de riqueza mais desigual do que os outros. Uns mantêm-se muito ricos e a maioria muito pobre. A segunda é revolução cultural, onde se inclui a tecnologia e a ciência. A nossa cultura científica precisa de se reencontrar com as culturas tradicionais comunitárias. Se me perguntarem assim: “disseste que o sistema capitalista não é uma alternativa viável para a realização das liberdade”, vou dizer que não, principalmente devido à aliança que existe agora no mundo entre o capital financeiro e a política. Os bancos estão a dominar todos os esquemas do mundo. A ideia original de um banco é para facilitar o desenvolvimento. E, quando se torna uma elemento que impede esse desenvolvimento, temos que nos equacionar por que precisamos de um banco na nossa economia se não é financeiro. Não tenho uma solução para dizer que tipo de sociedade nós precisamos. Graça Machel tem falado de “um estado solidário” e existem outras discussões à volta disso. Mas uma coisa é certa, qualquer sociedade que queiramos construir deve equacionar três valores básicos: o que é moçambicanidade? O que é africanidade? qual é o lugar de Moçambique em África e de África no mundo? E o que é aquilo que nós chamamos de ser glocal, que mesmo localmente usufrui dos direitos que a modernidade lhe dá, que é ir à escola, ter habitação condigna e evoluir até aos direitos espirituais de poder ler, ser membro de um partido, de uma religião.
No “Pensamento Engajado” escrevem que se substituiu Deus pelo Ocidente. Que impacto tem na nossa existência como um continente e até mesmo como um país a substituição de Deus pelo Ocidente?
Há um consenso geral de que desde que começaram as políticas de liberalização os conflitos  sociais aumentaram. Desde que entrou FMI não vejo um resultado positivo a não ser uma aliança muito estreita entre as elites políticas, económicas e intelectuais com ocidente, deixando o povo em condições piores que antes. Se não há nenhum resultado positivo por que vamos continuar a fazer isso? Temos que fazer uma equação de existência como seres humanos, africanos e moçambicanos, neste momento, e o que precisamos para o futuro? Até que ponto essa presença não é uma ingerência, não é um atentado à soberania de decidirmos por nós mesmo? Isto está no quadro da estrutura do nosso “Pensamento”, que tem dois eixos: um que é a desmistificação do ocidente. Portanto, não podemos considerar que o sistema político, o sistema económico,  a forma como o ocidente faz a democracia, que são deuses. Temos que desmistificar este papel divino, este papel  de líder que o ocidente tem hoje. desmistificar não significa não querer, mas desestruturar.
Como é que olha para a democracia em África? Será que os países africanos são realmente democráticos?
Tenho um capítulo deste livro “Pensamento Engajado” que se chama “Espírito de Democracia” e, em certo momento, digo que corremos o risco de termos uma democracia sem democratas. Concebo a democracia em três dimensões: há democracia como sistema com limitação de poderes, divisão de poderes. Ou seja, de uma forma clássica temos poder legislativo, poder executivo e temos poder judicial, que estão separados, estruturalmente, mas, por vezes, em África, sobretudo em Moçambique, há uma promiscuidade e essa tentação nenhum político escapa a ela. Mas temos uma democracia, em termos de sistema, que funciona. Temos um parlamento; temos eleições e limitação de mandatos, tudo isso que faz parte de uma democracia moderna. Segundo, democracia é um método de trabalho, aprende-se na escola e aprende-se a viver democraticamente. Aí é onde vejo problema, porque os nossos partidos, particularmente da oposição, não têm uma democracia interna. Têm uma espécie de líderes internos, não são eleitos ou as eleições são feitas de uma forma obscura. Isso faz com que eu volte à tese de que corremos o risco de termos uma democracia sem democratas, porque nessa educação democrática, através de utilização de métodos democráticos nas organizações, ainda temos um grande défict até como consubstanciar isso nas nossas leis, obrigar os partidos, obrigar as organizações de massas a terem métodos democráticas de eleição dos seus líderes. Isso no geral vai criar a disposição de aceitar os resultados. Em terceiro lugar, falo de valores democráticos. Esse é que é o ponto central da democracia. O que você pode sentir em países democráticos é o respeito pelo outro; ter tempo de ouvir a argumentação do outro; ter uma predisposição para debate de ideias num parlamento e ser fiel aos seus princípios. Esses valores não existem, o que seria sustentáculo da democracia como sistema.

Fonte: http://www.opais.co.mz/index.php/entrevistas/76-entrevistas/17439-a-falha-do-capitalismo-e-o-dominio-da-banca.html

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