Em Specters of Marx Derrida começa por confessar que, quando teve que reler O Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels – o que, como ele escreve, “já não fazia há anos”, como, decerto, muitos de nós – sentiu um calafrio: “eu sabia muito bem que havia um fantasma a espera lá, logo à partida, ao abrirem-‐se
as cortinas. Agora,
decerto,
descobri,
na verdade lembrei-‐me, o que poderia estar a caçar a minha
memória: as primeiras palavras d’O Manifesto…”. Derrida refere-‐se às primeiras palavras d’O Manifesto: “Ein Gespenst geht um in Europa
– das Gespenst des Kommunismus” (do alemão: um espectro paira sobre a Europa: o espectro do comunismo).
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Professor José P. Castiano |
E, assim, neste esforço de ressuscitar Marx, começa o fenómeno ou efeito espectral: cada um faz ressuscitar Marx
à sua maneira e necessidades. É, por isso, que Derrida declara: There is more than one of them, there must be more than one
of them, ou seja,
há
mais do
que um somente,
e deve ser
mais do
que um
dos que reclamam
ser verdadeiros herdeiros de Marx. Há muitas vozes espectrais, os herdeiros
de Marx são mais do que um (we are more than one form of speech [p.18]). Daí, o titulo Espectros de Marx.
Mas, prossegue Derrida, cada uma dessas vozes corre o risco de estar out of joint, isto é fora do eixo do contexto do seu tempo, fora do eixo da conjuntura; ou melhor, todas as vozes que se dizem herdeiras de Marx estão fora do eixo tempo. Será?
Estará também Alberto Ferreira out of joint, que se inaugura no debate filosófico moçambicano, ao escrever sobre Marx com o livro Totalitarismo e Democracia
(Edições Paulinas, 2014), quase três décadas depois do desmoronamento da
primeira grande experiência socialista construída e sustentada nos ideais
comunistas marxianos? E, também, num tempo em que Moçambique
saiu do eixo do seu tempo ao despedir-‐se oficialmente do socialismo
como projecto
social (que me lembre,
só o Hino do Partido Frelimo
ainda ostenta
o “socialismo triunfará”)?
Uma leitura diagonal
sobre o substrato
filosófico do Ferreira – é professor
de Filosofia Política na Universidade Eduardo Mondlane
e na Universidade
Pedagógica
– mostra que ele tem uma grande preocupação pelo lugar do cidadão (e não
pelo “povo” que
“não
quer
dizer nada”, escreve Ferreira
apoiando-‐se em
Locke).
Penso
que a questão principal que Ferreira quer responder é: onde está o cidadão no projecto de Marx? Que se passa com as liberdades individuais? No fundo, Ferreira usa Marx para interrogar uma das questões fundamentais que a filosofia política em
Moçambique
tem
debatido nos
últimos
anos:
a
questão das liberdades
do africano
a partir do paradigma ngoenhiano
que podemos chamar
de “libertário” (Cfr.
principalmente em Das Independências às Liberdades e em Os Tempos da Filosofia de Severino Ngoenha).
Comecemos, portanto, pela questão da ideologia. A teoria de Marx sobre ideologia não se deve entender fora do contexto do seu conceito de classes sociais. A divisão dos homens em classes sociais parte da ideia marxista de que a situação económica é a que determina, em última instância, o lugar, a forma e a quantidade de apropriação
de cada
indivíduo
ao produto do
seu
trabalho
e
as riquezas criadas numa sociedade em
geral.
Mas
o
factor determinante de todos eles é
a posição que cada um ocupa perante os meios de produção. Se és proprietário e empregas pessoas, então estás na classe exploradora; caso contrário é obrigado a ir pedir trabalho para produzir “mais-‐valia” para os proprietários em troca de um salário que é suficiente para reproduzir a força de trabalho que a
produção capitalista
necessita
para se
desenvolver. Dependendo, pois, da
posição perante os
meios de produção, um indivíduo pertence à classe dominante ou à classe dominada.
No entanto, como o próprio Marx escreve em A Ideologia Alemã, “as ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais
dominantes que tornam uma classe a classe dominante, e portanto as ideias da sua dominação”. Daqui sai a ideia da ideologia marxista. Ideologia em Marx inclui as concepções sobre a moral, a religião e a metafísica; ou seja, todo o conjunto de valores e ideias que possam ser suportadas e, por seu lado, suportar o sistema económico. Assim, o Estado capitalista abraça um conjunto de ideias e valores que estimulam a ideia de sucesso individual: se és bem-‐sucedido na escola ou tens um bom emprego é por causa do teu talento; ou, no caso do contrário, se trata de fracasso individual. Estas ideias e predisposições
fortificam
o sistema capitalista na medida em
que estimulam para o trabalho
que vai enriquecer ao
capitalista que
se apropria dele mas ao mesmo tempo dá
a ideia
fictícia (aqui reside o carácter
ideológico)
de que
para
ter sucesso
individual, basta trabalhar muito. É fictício porque o indivíduo isolado não se dá conta que está a contribuir para a reprodução das condições de produção capitalistas, ou seja, para uma maior exploração de um homem pelo outro.
Se o Estado capitalista precisa de uma ideologia
para suportar as suas condições
de produção, assim também o Estado socialista. Pois, a
classe operária vai necessitar de uma ideologia socialista para combater o
seu inimigo capitalista. Se os meios de produção passariam, no socialismo, a ser propriedade colectiva e, por essa via, eliminar-‐ se-‐ia a apropriação privada do excedente da produção,
então pouco teria sentido continuar com uma ideologia individualista,
como anteriormente
vimos.
Uma revolução
de valores
ideológicos
se impunha para que a classe dominante (operários)
pudesse “impor” os seus próprios
valores às sequelas (pessoas e
valores) do capitalismo. Para
esta
luta era necessário que houvesse um “aparelho” ideológico; e este aparelho faria o “trabalho ideológico”, ou
seja, o de
criar novos
valores por
formas a “educar”
a
toda
uma sociedade.
Assim
devemos compreender o ímpeto
de abranger toda uma sociedade com uma mesma ideologia, ímpeto materializado em várias experiências socialistas por todos os cantos do mundo, incluindo a moçambicana.
Ele intuiu
este
vazio e fez-‐nos regressar a Marx (haveria
outro
melhor?). Ferreira entrou
para
os nossos armários poeirentos dos livros de Marx e nas nossas consciências recalcadas para sacudir os esqueletos marxistas.
Aliás, não foi somente a maioria dos moçambicanos que ficou de mãos vazias depois do falhanço do comunismo/socialismo. É o mundo todo que hoje não consegue ter uma alternativa teórico-‐explicativa abrangente o suficiente para compreender a actual crise económica, sobretudo porque esta encerra contornos políticos órfãos de novas utopias. Keith Hart, coordenador do grupo Human Economy e professor na Universidade de Pretória, põe o dedo na ferida ao defender que o problema da actual crise mundial provem do facto de se terem removido os mecanismos políticos nacionais de controlo das moedas (nacionais) para instâncias
globais (vamos dizer: para os bancos americanos e europeus) enquanto o resto de políticas ainda continua a operar em contextos nacionais. Por isso,
segundo
ele,
assistimos
desde 2008
ao fenómeno da
crise ou
mesmo
o
colapso do que
ele
chama por “capitalismo nacional” dada a perca do controlo dos termos de câmbios e valores das moedas nacionais pelos seus respectivos governos. Embora a crise actual
apareça
como sendo
financeira,
ela á, no entanto, profundamente política, conclui Hart.
Assim, quem mais do que Marx poderia servir de referência para um exercício teórico de deconstrução sobre como funciona o capital e o seu carácter fetichista nas condições de hoje? Ou ajudar-‐nos a redescobrir o fio da meada que ele foi tecendo a partir da análise do átomo duma sociedade capitalista
(i.e. a moeda) para chegar a desvendar o sistema político capitalista e deduzir uma utopia social? Atrevo-‐me mesmo a formular o convite a Ferreira para, no espírito espectral de Marx, aprofundar este tema, no seu próximo livro.
Acho que
a
"revisão"
de Marx,
no mundo contemporâneo,
e
em Moçambique em
particular,
principalmente quando esta é feita a partir duma perspectiva muito especial de Karl Popper, é de muita pertinência. De facto, os “ataques” popperianos a
Marx na Sociedade Aberta e
os Seus Inimigos, obra que foi e é obrigatória para todo o estudante de Filosofia Política, são incontornáveis para quem quer escrever “contra” Marx. No entanto, Popper foi apenas um “espectro” de Marx por sinal out of joint. Noutra margem espectral encontramos
outros que o leem com
outras lentes menos obscuras. Em Porque
ler Marx hoje? o
filósofo
britânico
Jonathan Wolff
declara
que
"podemos pensar em Marx como o bisavô do movimento
anti-‐capitalista hoje". Isto não antes de, uma página
antes, ter escrito as premissas desta conclusão:
"Mas ao celebrar
o fim do 'império
do mal' esquecemo-‐nos de que os pensadores que inspiraram
o comunismo
do Leste europeu
não
eram pessoas
mas,
pelo contrário,
viam-‐se
como
nossos salvadores.
A
custa de
um enorme sacrifício pessoal, procuraram
libertar a humanidade daquilo
que acreditavam
ser um sistema
económico e social desumano:
o capitalismo. Impelia-‐os tanto
uma visão
de como
a sociedade
devia ser como dar conta daquilo
que estava errado
na sociedade
burguesa existente.
A visão positiva tornou-‐se um pesadelo
(apesar de ser outra coisa
saber se os regimes comunistas foram
ou não uma interpretação
autentica das ideias
de Marx).
Mas
falhanço do comunismo não quer dizer que tudo esteja bem no capitalismo ocidental,
liberal e democrático.
E é Marx, acima de
tudo, quem ainda nos fornece
as ferramentas mais adequadas
para criticar as sociedades existentes"8.
Também não deixo de olhar para as últimas palavras deste estudo sobre Marx escrito por Wolff: "Marx continua (hoje) a ser o crítico
mais perspicaz do capitalismo (...). Podemos não confiar nas soluções para os problemas que ele identifica,
mas
isso não
faz
com
que os
problemas (por ele identificados)
desapareçam".
Os
críticos
do
capitalismo de hoje devem ter em Marx um filão de ouro como referência para as suas utopias.
Mas a resposta convincente
da razão pela qual devemos
continuar a ler Marx hoje é nos dada por Derrida. Ele declara: “Continuar a procurar inspiração de certo espírito do marxismo seria ter fé no que sempre foi o principal do marxismo, como
princípio
e acima
de tudo a crítica
radical, nomeadamente
o procedimento
de fazer a sua própria autocrítica. Esta crítica quer, por si mesma e de forma explícita, ter como princípio ser aberta à sua própria transformação,
reavaliar-‐se, auto-‐interpretar-‐se”. Nesta linha, segundo Derrida, o marxismo se coloca na linha do
espírito do iluminismo (spirit of the enlightenment), espírito este que não deveria nunca ser abandonado9.
Efetivamente,
segundo
Derrida,
a
razão
de voltarmos
a
Marx
deve-‐se
ao facto
de ter sido este o primeiro a construir uma crítica
radical ao
capitalismo.
Tanto
mais
é
importante
recorrer
a
Marx porque,
como Derrida sugere, perante o cenário capitalista de hoje10, só podemos ter duas atitudes (críticas): ou aceitamos o fatalismo do “fim da história” de Fukuyama ou retomamos a Marx para uma crítica
radical sobre estes fenómenos. Derrida,
no que diz respeito ao fukuyanismo, nega o fatalismo: This Marxist critique can still be fruitful if one knows how to adapt it to new conditions, whether is this a matter of new modes of production, of the appropriation of economic and techno-‐scientific
powers and knowledge, of juridical formality in the discourse and the practices of national or international law, of new problems of citizenship and nationality (…). E, no que diz respeito aos que se consideram “herdeiros”
de Marx na crítica
ao capitalismo, adverte que estes espectrais não devem parar na crítica em si, ou seja, “criticar por criticar”, como dizemos cá em casa. Tal como Marx o fizera, é necessário avançar para além da crítica apresentando
novas alternativas
de organização e da concepção
do social e do mundo (novas utopias). É preciso desconstruir o marxismo e voltar à utopia.
Herdar
o espírito de Marx, neste caso, não seria necessariamente insistir no conteúdo da sua utopia social, o comunismo, mas sim no espírito tipicamente marxista de apresentar uma alternativa ao capitalismo. É importante diferenciar estes dois fenómenos espectrais de Marx.
Se calhar ficaria bem terminar com um trecho do próprio Marx: "Se
tivermos escolhido aquela posição de vida em que podemos,
acima
de tudo, trabalhar
para
a
humanidade, nenhum
fardo
nos pode
vergar, porque
são sacrifícios para o benefício de todos; não sentiremos então nenhuma alegria mesquinha, limitada e egoísta, mas a felicidade
pertencerá a milhões,
as nossas acções
permanecerão silenciosas mas continuamente a trabalhar e sobre as nossas cinzas derramar-‐se-‐ão
as lágrimas quentes de pessoas nobres".
Talvez, o mais interessante sobre Marx, seja esta estória dele, quando fazia 19 anos. Ele escreveu ao seu pai: "...durante
a minha doença fiquei a conhecer
Hegel
de trás para frente, juntamente
com a maior parte dos seus discípulos".
Aparte
deste esforço, Marx aprendia sozinho inglês e italiano, informa ele ao seu pai. Termina esta carta com um PS: "perdoa, querido pai, a caligrafia ilegível e o estilo descuidado. São quase quatro horas. A vela já se gastou e doem-‐me
os olhos".
Marx não mudou este estilo nocturno durante toda a sua vida.
No enterro do seu amigo Marx, Engels viria a dizer, quiçá entre as lágrimas: “Tal como Darwin descobriu a lei da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenrolar da humanidade; Marx também descobriu a
lei especial do movimento que
governa o modo de produção capitalista dos nossos dias e a sociedade burguesa que este modo (de produção) criou. A descoberta
da mais-‐valia
iluminou o problema
subitamente que
todas
as investigações anteriores tinham tacteado no escuro".
- Para Ferreira o projecto (libertário socialista, sim “comunista”) de Marx “faliu”; aliás esta “conclusão” já se entrevê no subtítulo do livro Porquê faliu o projecto libertário de Marx? Se essa for a sua premissa, então por quê escrever sobre um projecto que o próprio Ferreira considera ter falido?
- O quê teria falhado em Marx, mais exactamente na sua teoria, para poder considerá-‐lo, segundo Ferreira, como um dos “grandes opositores das liberdades individuais”? Há três aspectos – atribuídos por Ferreira à teoria marxiana – que fizeram falir o projecto libertário: (i) a “ideologia marxista” que oprime o sistema de valores, (ii) a teoria do Partido-‐Estado que, nas palavras de Ferreira, “afunilou” o sistema político dos países que adoptaram o marxismo como filosofia de Estado e (iii) o comunismo, um sistema económico que, na óptica de Ferreira, não criou espaço para o desenvolvimento de iniciativas e liberdades individuais. Estas três “falhas” do marxismo são desenvolvidas por Ferreira com o apoio de leituras, de certa forma e propositadamente acríticas, do conceito de historicismo desenvolvido por Popper, da noção da dialética desenvolvida por Bernstein e do totalitarismo na visão de Arendt e outros. Ferreira chama estes teóricos em o seu auxílio para “rever” o efeito espectral de Marx hoje. E, ao assim fazer, o próprio Ferreira entra no jogo espectral descrito por Derrida. Ferreira nos actualiza e contextualiza (para o caso moçambicano) as críticas sobre as consequências da teoria marxiana que se pretendeser, em parte, “promessa messiânica” (expressão de Derrida).
- Ferreira chama a este fenómeno “totalitarismo”, tomando por empréstimo o historicismo denunciado por Karl Popper do livro A Sociedade Aberta e os seus Inimigos. Será? O “totalitarismo” que Ferreira encontra em Marx fundamenta-‐se no que o autor, agora em análise, chama por “teoria do Partido-‐Estado” de Marx. Ferreira, no capítulo Marx e Democracia (pp. 103-‐108) começa por reconhecer que “Marx foi quem, mais do que ninguém, exigiu direito à igualdade, o direito à liberdade, inclusive o direito de opinião, emancipação social e política dos cidadãos …” reconhecendo que estes são “traços característicos de uma sociedade que prima pelo reconhecimento e pela afirmação dos cidadãos e, consequentemente, um Estado democrático e de Direito” (p.103); páginas depois, porém, o nosso autor escreve: “Na sociedade sonhada por Marx, lançar críticas ao Partido Comunista, exercer o direito à greve (o direito de exigir os próprios direitos) e exprimir o próprio pensamento não só era interdito, mas também era acompanhado de sérias repercussões penais, tais como a prisão, a perseguição, a exclusão social até a pena da morte” (p.105). Esta aparente contrariedade leva o nosso autor a afirmar conclusivamente: “Marx lutou contra os tiranos criando outros tiranos”.Assim, o primeiro passo para o totalitarismo na teoria marxiana, segundo Ferreira, foi o de negar as liberdades individuais aos cidadãos do futuro comunismo criando mecanismos para reprimir todas as vozes que não fossem reconhecidas como sendo “comunistas”. Entretanto, segundo Ferreira, o golpe final a caminho do totalitarismo é a formação de um “partido único e homogéneo”. Ferreira é, aliás, informado nisto por autores como Pellicani e Amendola, após ter-‐se servido de Arendt como suporte. Ferreira declara: o instrumento fundamental e original da ditadura comunista é a “presença de um partido único” (p.111); porque, como o nosso autor argumenta umas páginas antes, “o partido é elevado ao planificador geral da vida onde a distinção entre a esfera privada e pública desaparece”. Onde, portanto, Marx via o partido como uma forma de manifestação organizada do proletariado, Ferreira vê como uma das características principais dum regime totalitário. Onde Marx vê o partido comunista como uma base para o proletariado tomar o poder e tornar-‐se a classe dominante (na verdade Marx e Engels escrevem n’O Manifesto: “pela sua forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra a burguesia assume o carácter de luta nacional” [it. meu]. Desta forma, Marx vê o Partido Comunista como uma forma de organização nacional, enquanto que o conteúdo da luta proletária é universal; daí o apelo aos proletários de todos os países para se unirem!), Ferreira vê, em contrapartida, como sendo o objectivo principal dos partidos comunistas “anular o poder do povo, a sociedade civil, os cidadãos”, tendo como consequência a tomada de decisões pertencer, na fase “socialista” da construção do comunismo, ao partido único.Ferreira, na sua descrição sobre o totalitarismo, opera, de propósito, em dois planos sem necessariamente querer distinguir um do outro. Por um lado no plano da teoria marxiana; por outro no plano do que ficou conhecido como
o “socialismo real”, este último que se consubstancia nas tentativas de praticar as teorias de Marx. Aqui o nosso autor não só descreve as “evidências” da União Soviética com Lenine e Estaline, como também nos faz sentir na carne as atrocidades do fascismo italiano e do nazismo alemão. Justifica-‐se assim o juízo que vimos Ferreira fazer antes: Marx tanto lutou contra tiranos, como criou (ou melhor fundamentou) outros.Ferreira ensaia aqui um plano muito peculiar da crítica filosófica: olhar a teoria pelos resultados; ou seja: criticar uma teoria através de factos que foram originados presumivelmente por esta teoria ou ainda “em nome” desta mesma teoria. Separar ou não Marx dos Marxistas? Separar ou não Marx dos efeitos espectrais da sua teoria? Ferreira optou (implicitamente?) por juntar, pelo menos a partir do capítulo intitulado Consequências Imediatas (pp.119-‐120) até o capítulo A Violência (pp. 121-‐130). Derrida parece ter ido por um caminho contrário ao declarar, usando o método de deconstrução, que todos estes críticos de Marx estão fora do eixo do seu tempo (out of joint). Penso que Ferreira abre aqui um campo de debate que irá transfigurar o problema no debate intelectual moçambicano, nomeadamente o de reencontrar-‐se com Marx, uma vez este já ter tido uma influência fundamentacionista no horizonte teórico da nossa sociedade.Em Moçambique, na história do ensino da filosofia, o marxismo já foi a única doutrina dominante. Muito pouco do conteúdo marxista ainda se trata hoje nos programas de ensino. Temos uma forma estranha de tratar elementos que parecem incómodos na nossa auto-consciência histórica: esquecer; ou seja: tratando apagar os vestígios marxistas recalcados na consciência colectiva dos moçambicanos, sobretudo das décadas 70 e 80 do século passado. Tudo menos confrontar-‐nos, duma forma argumentativa, com este passado-‐presente da nossa auto-‐ consciência. Ferreira está, com este livro, a vasculhar teimosamente o que tentamos recalcar. E escolheu esta forma quase “bruta”, mas eficaz de nos fazer entrar no debate: olhando a teoria marxista sob o pretexto de criticar a (sua) prática, mesmo sob o risco de ser injusto ao Marx. Escolheu Marx para denunciaro totalitarismo, penso. Este livro poderia bem se chamar, no seu subtítulo, “porquê faliu o totalitarismo?” ao invés deste que nos é dado e que nos referimos acima.
Só assim podemos compreender a crítica terceira de Ferreira neste livro: contra o comunismo como projecto social porque este, como sistema económico – diz-‐nos o autor – teria usurpado todo o espaço de desenvolvimento do indivíduo a favor do colectivo imaginário. Aliás, aqui também observamos a mesma estratégia: confrontar a teoria (melhor, a utopia social) do comunismo com a sua prática. De facto, podemos afirmar sem rodeios, o projecto comunismo faliu. Deixem-‐me dizer, antes, que o comunismo – nos olhos do nosso autor um sistema gerador de intolerância política, de totalitarismo e, enfim, das diferentes facetas de “violência” – é, em contrapartida, uma utopia social de Marx juntamente com Engels. No capítulo Proletários e Comunistas d’O Manifesto ambos têm a preocupação de manifestarem o que separa os comunistas de outros partidos e intelectuais proletários. Escrevem: “os comunistas particularizam-‐se face aos restantes partidos proletários apenas (it. meu) pelo facto de que, por um lado, nas diversas lutas nacionais dos proletários salientam e fazem prevalecer os interesses comuns de todo o proletariado independentemente da nacionalidade e pelo facto de que (…) representam sempre o interesse do movimento como um todo nas várias etapas do desenvolvimento …”. Portanto, o comunismo autocompreende-‐se, na perspectiva dos seus teorizadores Marx e Engels, como um movimento (é importante destacar este termo em oposição a uma sociedade acabada) ultra-‐nacional, portanto universal e continuadora da tradição de luta entre as classes sociais.Como que antevendo os “desvios” feitos em nome deste movimento, mais tarde, nos países do chamado “socialismo real” do Leste e em alguns africanos, e também tomando precauções de possíveis criticas, Marx e Engels escrevem: “Aquilo que diferencia o comunismo não (it. meu) é a abolição da propriedade de uma formageral, mas a abolição da propriedade burguesa (it. meu)”. Marx e Engels chegam a ser ainda mais explícitos: “De modo nenhum queremos pôr fim a (…) apropriação pessoal dos produtos (…). Queremos apenas eliminar a natureza miserável desta apropriação, em que o operário só vive para multiplicar o capital, só vive enquanto ointeresse da classe dominante assim determinar”.No entanto, temos de reconhecer que, sobre o comunismo como uma variante do totalitarismo, junto ao seu “irmão” o fascismo, muito se escreveu depois de Marx que pelo próprio Marx. Assim, torna-‐se de facto uma grande “aventura” juntar todos os pedaços do que ele escreveu sobre esta doutrina comunista e fazê-‐la aparecer ou “passar” como se ela fosse, de facto, uma teoria sistematizada. Vagas ideias de Marx sobre o comunismo são-‐ nos dadas no debate aceso, com insultos pelo meio, havido entre ele e Bakunine, por um lado; por outro, os escritos “furiosos” de Marx no panfleto Crítica ao Programa de Gotha. Com Bakunine as divergências rondaram em volta do interessante termo “ditadura do proletariado”. Enquanto Marx opinava que uma “ditadura da maioria” era necessária para se poder eliminar por completo as sequelas do capitalismo (através, por exemplo, de medidas de socialização, nacionalização ou estatização [conforme os ângulos] da propriedade privada sobre os meios de produção concentrados nas mãos de uma minoria de capitalistas exploradores), Bakunine era de opinião contrária: a fase da “ditadura do proletariado” não lhe parecia ser necessária; pelo contrário, era mesmo perigosa porque os “representantes” do proletariado poderiam tornar-‐se autoritários; e havia um perigo eminente para isso: a minoria que, em nome da maioria iria exercer a “ditadura”, não iria querer mais entregar de volta o poder aos operários (ou aos outros partidos). Porque, imagino eu com Bakunine, a ditadura é doce demais para quem está do lado do sol e é amarga demais para quem pode estar a ver o sol aos quadradinhos.Marx ficou furioso com esta desenvoltura de Bakunine (“um homem desprovido de qualquer conhecimento teórico e que não percebe o que quer que seja da revolução social”). Bakunine acabou sendo classificado por “anarquista” nos anais da historiografia “marxista” ortodoxa. A Crítica ao Programa de Gotha acaba por ser também uma escrita contra Lassaille. É neste panfleto que Marx expõe o famoso princípio comunista: “a cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”. Marx quase que projecta para a sociedade o princípio geral que, comparativamente, parece ser válido para o contexto familiar: fazemos as crianças participarem no trabalho segundo as suas capacidades, mas damos-‐lhes tudo na base de necessidade de cada uma delas!Outras pistas sobre o comunismo de Marx (por exemplo em Ideologia Alemã) apontam ainda para a mesma noção evolutiva e do movimento do comunismo: “O comunismo não é para nós um estado de coisas a ser estabelecido, nem um ideal ao qual a realidade terá de se ajustar. Chamemos comunismo ao movimento real que abole o estado das coisas” em cada época e fase. Enfim, é a atitude não típica em Marx segundo o qual “vamos lá ver para ondeisso vai” que aqui queremos sublinhar.Assim, a suspeita que temos, é que a inclusão do capítulo “forte” do Marxismo chamado “Comunismo Científico”, no que veio a ser conhecido como doutrina marxista-‐leninista, foi visivelmente a posterior, embora baseando-se em frases mais emblemáticas atribuídas a Marx. Este livro do Ferreira é uma boa incursão aos novos desenvolvimentos teóricos pós-‐Marx, incluindo a crítica da doutrina sobre o comunismo. No fundo é uma pós-‐ crítica. Mais uma vez, Ferreira nos abre a porta da nossa autoconsciência histórica recalcada: Então não foi o comunismo (no mínimo o socialismo) um projecto da “geração da utopia” e da chamada geração “8 de Março” em Moçambique? Então não abandonámos (ou fizeram-‐nos abandonar?) este projecto social de mãos vazias? - O fantasma de Marx ainda paira sobre nós. Ferreira encarnou o efeito espectral do fantasma, neste livro. Convida-se outros espectros moçambicanos que juntem os esqueletos marxianos e os tirem fora do armário, sem assombrações.
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Parabéns pelo post.
Avante.
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